Acordamos com alguns barulhos de conversa no apartamento da
família Shrek e suspeitamos que Arabella já tivesse chegado. Aproveitamos pra
nos levantar e conhecer melhor Viena, tirando logo a má impressão da cidade,
graças à chegada esquisita, no dia anterior.
Depois de pronta, pus-me a preencher o formulário que o ogro
da SS havia me dado pra entregar à Arabella, quando fôssemos fazer o pagamento. Preenchi
tudo de cabeça, com exceção da data de validade do passaporte, que teria de
verificar. Fui pegá-lo na bolsa.
Ele estava no estojo preto, onde morava e só saía estritamente
quando solicitado por alguém, mas pra lá voltava imediatamente em seguida.
Procurei, procurei, mas não o encontrei. Suei frio. Olhei em volta da bolsa pra ver se
não havia escorregado algo pra fora e nada. Comecei a tirar as camadas de
casaco que já tinha vestido, porque uma onda de calor tomava conta de mim. Não
era possível!
Distraída de carteirinha que sou, já aprendi os mecanismos
necessários pras situações de extrema importância, principalmente em viagem. E
os cuidados com o passaporte estavam nessa categoria. O procedimento era jamais
tirá-lo da bolsa e, quando solicitado, ter consciência de sua reposição no
mesmo lugar. E eu havia feito tudo conforme o figurino!
Ainda que sem esperança, pois o estojo onde o passaporte
ficava era grande, justamente pra que eu não tivesse dificuldade de encontrá-lo
na bolsa, tirei item a item. Mas a realidade era mesmo aquela. Ele simplesmente
havia desaparecido.
Retomei mentalmente os últimos passos, procurando lembrar a
última vez em que havia visto o documento e foi clara a memória da saída de Veneza.
Nos 45 minutos do segundo tempo pra perder o ônibus, depois de colocadas as
malas no bagageiro, entramos esbaforidos e mostramos os passaportes ao
condutor. Lembro de que me chamou a atenção o fato de o motorista nem ter
chegado a pegá-lo. Só viu as capinhas azuis e acenou com a cabeça. E lembro-me
também claramente de ter executado o procedimento padrão de retornar o
passaporte pra sua casinha de sempre.
Imediatamente, vieram-me à memória os casacos, anéis,
guarda-chuvas, canetas, elásticos de cabelo, maquiagens e toda sorte de objetos
que já perdi nessa vida. Uma infinidade! O sentimento era sempre o mesmo. Uma
frustração enorme por não conseguir controlar essa minha detestável
característica de distração. Frustração que é quadruplicada pela reação das
pessoas quando ficam sabendo da perda e invariavelmente enxergam o evento como
um traço meu de descuido, desleixo, irresponsabilidade ou algo parecido. Só
que, nesse caso, era ainda pior. A pergunta que ecoava na minha cabeça era
aquela que eu tinha certeza de que iria ouvir daí pra diante,“Como assim você
perdeu seu passaporte?”.
Já realizando na minha cabeça que a perda era um fato,
confessei o problema ao Eduardo. A primeira reação dele foi refazer comigo a
procura e sugerir possíveis locais onde o documento poderia estar. Fizemos
juntos a nova busca, mas eu já sabia do resultado, pois me lembrava com clareza
de que em momento algum eu havia retirado o sujeitinho azul da bolsa, a não ser
dentro do “procedimento-padrão”.
A essa hora, eu, que já estava em lágrimas de culpa e
frustração, fui acalmada com uma gentileza e carinho de que só o meu namorado é
capaz. Felizmente, o Eduardo é generoso, amoroso e incapaz de me
culpar pelo ocorrido. Depois de me tranquilizar, ressaltou que ficaríamos
tempo o suficiente em Viena pra resolver aquela situação. Dito isso, rapidamente
encontrou na internet o telefone de emergência do consulado brasileiro.
Apesar de ser uma segunda-feira, era feriado em Viena. No
entanto, havia um plantão e fui atendida pela funcionária Nilza. Quando disse
que ficaria ainda mais 3 noites em Viena, Nilza me garantiu que haveria tempo
para um novo passaporte. Eu teria de fazer uma ocorrência na Polícia e levar
esse registro até o consulado no dia seguinte, uma vez que estávamos num
feriado. Ressaltou que eu teria de pagar uma taxa de 160 Euros (!!!) em
dinheiro pelo novo documento, mas que no mesmo dia ou, no máximo, no seguinte,
ele estaria pronto. Peguei com ela o endereço do consulado e desliguei um pouco
mais aliviada, além de um pouco mais pobre por antecipação também.
Uma vez que muita gente que se preocupa comigo estará tendo
notícias dessa questão agora, vale adiantar que deu tudo certo e que já estou de
posse do passaporte novo. Refiz meu procedimento, colocando o documento num
estojo ainda maior e que oferece bem mais dificuldades para possíveis furtos ou
quedas. Também vale adiantar que continuo sem ideia do que pode ter acontecido
com o antigo. O mais provável, entretanto, é que ele tenha, de alguma forma,
caído no ônibus de Veneza pra Villach.
(passaporte novo)
Cheguei a ponderar algumas vezes se deveria publicar este
texto ou não, mas eu acho interessante relatar também dificuldades que fazem
parte da viagem. Afinal, sei que vou rir da situação por que passei daqui a
algum tempo. Vale dizer também que sermões ou “críticas construtivas” sobre o
episódio serão respeitosamente ignorados, pois esse papel eu guardo pra minha
própria consciência. Acreditem, não há nada mais punitivo ou analítico do que a
ressaca moral de um distraído responsável após um evento como esse.
Bem, entendida a
situação do passaporte, terminamos de ajeitar nossas coisas e fomos, então,
conhecer aquela que dava nome àquele peculiar Bed and Breakfast, Arabella.
Arabella era uma alemã loura, de cabelos curtos com mullets
e um tanto andrógina. Apertou vigorosamente nossas mãos nos cumprimentando e
desandando a falar com um fortíssimo sotaque. Contou-nos que não morava em Viena, pois não gostava de
cidades grandes. Vivia no campo, com seu marido e seus bichos. Cuidava de
alguns apartamentos, como aquele em que estávamos e, pra isso, contava com a ajuda
do casal Shrek, ou seja, Michael e Karin. Perguntou se tínhamos roupas pra
serem lavadas, pois ela poderia colocar na máquina e deixar penduradas no nosso
quarto sem qualquer pagamento extra. Também nos deu várias indicações sobre a
cidade, inclusive sobre a delegacia mais próxima onde eu deveria fazer o
registro da perda do passaporte.
Depois da situação dramática da manhã e do carisma de
Arabella, a feiúra do apartamento deixou de ser tão importante e saímos felizes
com nossa hospedagem, depois de entregarmos a nossa hostess duas sacolas
consideráveis de roupa pra lavar.
Andamos até o local indicado sobre a delegacia e um oficial
não muito simpático disse que a tal ocorrência não poderia ser feita ali e sim
no Magistrado, em endereço que ele nos passou. No entanto, o policial ressaltou que
devido ao feriado, o local só estaria aberto no dia seguinte. Decidimos, então,
que acordaríamos cedo na terça-feira e faríamos a dobradinha Magistrado –
Consulado. Saímos finalmente pra ganhar Viena!
Àquela hora, a rua Mariahilfer já estava com vários restaurantes
abertos e paramos em um bastante simpático, chamado Freiraum. Depois que
entramos, descobrimos que o espaço era enorme e cheio de ambientes modernosos.
Eu precisava fazer uma certa desintoxicação de carboidratos
depois de 8 dias de Itália e pedi um prato de vegetais e alimentos naturais que
foi uma delícia. O Eduardo, no entanto, que já estava sofrendo de abstinência
hipercalórica, foi de croissant com nutella.
Depois, andamos até o fim da Mariahilfer e fomos até o Museum
Quartier. Nossa ideia era caminhar um pouco pela cidade antes de entrarmos em
qualquer museu. No entanto, uma chuvinha se anunciava e, por isso, resolvemos
começar o passeio pelo museu Leopold, que contava com uma linda coleção de
Schiele e Munch, entre outros.
O museu era bem moderno, clean e impecavelmente organizado.
Desculpem-me, mas não há como não repetir esse clichê, pois Viena é realmente
toda impecável.
Durante a visita, o Eduardo conseguiu fazer contato com sua
amiga de infância, Bruna, que mora em Viena e já sabia que estaríamos na cidade
por alguns dias. Marcamos de nos encontrarmos na Stephensdom, que é a principal
cadedral da cidade após algumas horas.
Depois de uma pausa pra café com strudel no restaurante do Leopold, continuamos vendo a linda coleção daquele museu, que contava com uma área
voltada à esplêndida arquitetura da cidade. Numa sacada muito boa dos organizadores, uma
parte dessa exposição foi feita com uma janela enorme para que se possa apreciar
a arquitetura in loco, que é a própria Viena.
Andamos em direção ao Centro Histórico, onde pudemos
conferir toda a grandiosidade explícita do longo período de poder dos Habsburg.
Por volta de 6 da tarde, encontramos com a Bruna e fizemos um tour por parte da cidade, passando pela Ópera, museus Albertina e Secession.
Pra jantar, ela decidiu nos levar a um lugar bem interessante e moderno, à
beira do rio, chamado Motto am Fluss, onde tomei uma sopa de côco apimentada
absolutamente divina e depois uma salada de quinua. Tudo acompanhado com enormes copos de cerveja! Afinal, em Roma, fazemos como os romanos, comendo muita pizza al taglio e em Viena também fazemos como os vienenses, bebendo cerveja em porções de respeito. Foi uma noite super divertida!
Um belo friozinho que iria nos acompanhar e mesmo se
intensificar até a estadia em Praga, já começava a dar sinais. Voltamos de
metrô, junto com a Bruna e felizes por termos levado casacos mais pesados pra
aquele passeio.
Chegando no Bed and Breakfast, repetimos o ritual de tirar o
quadro medonho e fomos dormir, exaustos, já com outra impressão da linda Viena.
